sábado, outubro 30, 2004

Maio 20, 1928
[este é para você, Vórtex; sei que gostará.]

Agora é invulnerável como os deuses.

Nada na terra pode feri-lo, nem o desamor de uma mulher, nem a tísica, nem as ansiedades do verso, nem essa coisa branca, a lua, que já não tem de fixar em palavras.

Caminha lentamente sob as tílias; olha as balaustradas e as portas, não para lembrá-las.

Já sabe quantas noites e quantas manhãs lhe faltam.

Sua vontade lhe impôs uma disciplina precisa. Executará determinados atos, atravessará previstas esquinas, tocará em uma árvore ou em uma grade, para que o futuro seja tão irrevogável como o passado.

Age dessa maneira para que o fato que deseja e que teme outra coisa não seja que o termo final de uma série.

Caminha pela rua 49; pensa que nunca atravessará este ou aquele pátio lateral.

Sem que suspeitássemos, já se despedira de muitos amigos.

Pensa no que nunca saberá, se o dia seguinte será um dia de chuva.

Passa por um conhecido e lhe faz uma brincadeira. Sabe que esse episódio será, durante certo tempo, mera lembrança.

Agora é invulnerável como os mortos.

Na hora fixada, subirá por alguns degraus de mármore (isto perdurará na memória de outros.)

Descerá ao lavatório; no piso axadrezado a água apagará rapidamente o sangue. O espelho o aguarda.

Ajeitará o cabelo, ajustará o nó da gravata (sempre foi um pouco dândi, como condiz a um jovem poeta) e procurará imaginar que o outro, o do cristal, executa os atos e que ele, seu duplo, repete-os. A mão não lhe tremerá quando ocorrer o último gesto. Docilmente, magicamente, já terá encostado a arma contra a têmpora.

Assim, creio, aconteceram as coisas.

[Jorge Luis Borges, in O Elogio da Sombra]

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